terça-feira, 31 de maio de 2011

Redução de danos ao alcance das comunidades

A Estratégia Saúde da Família (ESF) terá uma nova ferramenta no Rio de Janeiro a partir deste mês. Trata-se de um conjunto de materiais impressos baseados no princípio da redução de danos, que apoiarão as ações das equipes da ESF em seu trabalho com os usuários de álcool e outras drogas.

Os materiais foram desenvolvidos pela organização Viva Comunidade, que é responsável pela implantação da ESF por meio de 210 equipes que atendem a aproximadamente 800 mil pessoas em comunidades como Rocinha, Complexo do Alemão, Penha, Costa Barros e Ilha do Governador, entre outros.

O material é composto por um protocolo clínico, destinado às equipes médicas; um livreto de orientação para os usuários de drogas e seus familiares e uma cartilha para os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que será lançada no dia 25, durante encontro dos membros da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), na Fiocruz, no Rio de Janeiro.

A cartilha para os Agentes Comunitários é única em seu gênero. De acordo com Fabiana Lustosa Gaspar, Coordenadora Psicossocial da organização Viva Comunidade, e que está à frente da produção do material, a cartilha oferece aos ACS informação prática para lidar com os casos de uso ou abuso de álcool e outras drogas em suas comunidades.

“Um dos primeiros problemas identificados no trabalho que realizamos nessas áreas, além do alto consumo de drogas, foi a dificuldade que os integrantes das equipes de saúde tinham de trabalhar com os usuários. A demanda está no território, mas as equipes não sabem como intervir”, explica Fabiana.

Por conta dessa necessidade, a equipe da Viva Comunidade começou a trabalhar na produção do material. Fabiana esclarece que o trabalho não se restringe apenas à distribuição dos materiais, “mas também inclui a formação de grupos de discussão e acompanhamento das equipes para monitorar constantemente o processo”. O objetivo final é que, através dessa prática, as equipes construam um plano de ação local de atenção aos usuários de álcool e outras drogas que possa servir como modelo a outras regiões com problemas parecidos.

Que definição do conceito de “redução de danos” sustenta essa cartilha e os demais materiais?

Redução de danos consiste numa estratégia da Saúde Pública que busca minimizar as consequências adversas do consumo de drogas do ponto de vista da saúde e dos seus aspectos sociais e econômicos sem, necessariamente, reduzir esse consumo.

Fazer redução de danos implica em intervenções singulares, que podem envolver o uso protegido, a diminuição do uso da droga, a substituição por substâncias que causem menos agravos ou até mesmo a abstinência.

A redução de danos pressupõe que você pode tratar um usuário de drogas, mesmo que a pessoa ainda as esteja usando, pois ela respeita o direito que indivíduo tem de escolher se quer ou não parar de usar uma droga. Trata-se de uma noção mais ampla que a de outras abordagens, como a dos Alcoólicos Anônimos, as que condicionam o tratamento à abstinência total ou as que propõem obrigatoriamente a internação do paciente.

Que conceitos a cartilha irá difundir entre os Agentes Comunitários de Saúde?

A cartilha dá instrumentos teórico-práticos sobre esse trabalho e amplia essa perspectiva. Tem-se ainda a ideia muito arraigada de que a melhor forma de tratamento ao usuário de drogas é a internação e de que a cura é a abstinência, e isso não é verdade. A cartilha desmistifica isso e se foca na forma como o agente comunitário pode se aproximar do usuário de drogas.

Nas comunidades, o trabalho com este público é um tabu, e a cartilha oferece ferramentas práticas para romper com isto. Ninguém sabe como se aproximar de um usuário de crack ou de outras drogas nem com suas famílias. A Cartilha oferece ferramentas de como lidar com o usuário e a demanda de suas respectivas famílias. Além disso, aponta para a necessidade e importância de que estes casos sejam discutidos em equipe. E a partir desta, que serão construídas as propostas terapêuticas para cada usuário.

Como a Cartilha se insere na política de drogas dos governos municipal, estadual e federal?

Há muitos anos que a redução de danos faz parte da política nacional de álcool e outras drogas no Brasil. A prefeitura do Rio de Janeiro está interessada em expandir essa lógica e as ações de redução de danos na Estratégia de Saúde da Família, porque são estes profissionais que diariamente estão na comunidade e em contato com esses usuários de álcool e outras drogas. Sendo assim, a Cartilha ajuda a fortalecer a atuação destes profissionais, para que possam cumprir com os objetivos preconizados pela Estratégia de Saúde da Família.

Como é a estrutura da Estratégia de Saúde da Família, e em que consiste o trabalho da Viva Comunidade?

A Saúde da Família é uma estratégia do Ministério da Saúde baseada na atenção primária no território, mas com um diferencial: não se trata somente de curar a doença, mas sim de preveni-la e promover a saúde. Ou seja, compreende-se a saúde de uma maneira ampla. Por exemplo, na prática, há muitas atividades que vão além do atendimento clínico individual, como grupos, atividades esportivas dentre outros.

Como são formadas as Equipes da Estratégia Saúde da Família?

A Estratégia de Saúde da Família trabalha com a noção de território, isto quer dizer que cada equipe atende uma área adscrita. Isto possibilita que os profissionais possam acompanhar rotineiramente suas famílias cadastradas. Cada equipe atende entre 3.500 e 4.000 habitantes .As equipes são compostas por um médico, uma enfermeira, um técnico de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde, que são impreterivelmente moradores da comunidade em que trabalham. Cada agente comunitário de saúde acompanha em torno de 160 famílias.

Por que é requisito que os agentes comunitários de saúde pertençam à comunidade que atendem?

Por serem moradores, os agentes comunitários de saúde conhecem muito bem a população e os recursos do território e podem estabelecer mais facilmente um vínculo de confiança com as famílias atendidas. Assim, o agente funciona como um elo entre a comunidade e a unidade de saúde da família.

Além do trabalho nas unidades, as equipes da ESF têm outras tarefas?

Sim, as equipes realizam visitas domiciliares e atividades preventivas e de promoção da saúde nas escolas, na comunidade. A ideia é poder colocar em prática o que o Sistema Único de Saúde prega: prevenção e promoção da saúde, e não somente tratamento e reabilitação como até então tem sido feito no município do Rio de Janeiro.

Como será distribuída a Cartilha e como os agentes comunitários de saúde serão instruídos? Eles não têm formação médica…

Quando os profissionais se inserem na Estratégia de Saúde da Família, recebem uma capacitação denominada de “ introdutório” com objetivo de compreender os pontos básicos gerais do trabalho Os agentes também recebem esta formação e são sensibilizados para diversos aspectos referentes à saúde. O trabalho de capacitação na área de drogas seria um acréscimo a esta formação. Serão feitas grupos de discussão.

A formação das equipes será feita por etapas. Primeiro, serão escolhidas 3 unidades, uma de cada área para iniciar este trabalho. Funcionarão com projetos piloto. Após avaliação deste trabalho, as formações serão expandidas para as outras unidades paulatinamente.

Qual é a demanda, nas comunidades, desse tipo de serviço?

Há o consumo de drogas ilícitas, mas também há um grande consumo de álcool nas comunidades. Depende da área: há comunidades pacificadas em que o uso de drogas é mais velado, e há outras controladas por narcotraficantes onde se vê o uso de drogas na rua. Também há outras comunidades onde os mesmos traficantes não permitem o uso de determinadas drogas, como o carck, por exemplo. Enfim, há todo tipo de situações, mas há uma demanda grande de atenção ao usuário de drogas. È importante analisar a especificidade de cada território.

Como esse trabalho será feito em áreas complexas, de risco de violência pelo tráfico de drogas, os agentes têm medo de entrar falando de drogas em lugares assim?

Sim, eles manifestam inquietação de trabalhar em comunidades não pacificadas. Nessas áreas, é muito importante o trabalho de apoio dos articuladores sociais; fazer uma boa preparação do território, falar com os líderes comunitários, explicar muito claramente à comunidade no que consiste o programa e o que é que vamos fazer. Vamos deixar claro que nós faremos um trabalho exclusivamente de saúde, que não viemos fazer um trabalho de combate ao tráfico, não estamos na lógica do lícito ou ilícito, mas sim na lógica da saúde.

Como é a cartilha e que novidades ela traz em comparação a outros produtos similares? Ou ela é única?

Há cartilhas de redução de danos, mas não conheço cartilha práticas especificamente para agentes comunitários de saúde. Esta aborda como lidar com o usuário, dá conselhos do trabalho no dia-a-dia, explica como trabalhar com a família, como articular o trabalho com a equipe médica, que estruturas do governo podem apoiar, para onde encaminhar casos graves que superam a capacidade atendimento da equipe de saúde da família etc.

Muitas vezes, os problemas de dependência têm de ser tratados por psicólogos, assistentes sociais. As Equipes da ESF contam com esses profissionais?

As Unidades de Saúde da Família não contam com estes profissionais. Para este acompanhamento especializado podem contar com o apoio matricial do CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) ou do NASF(Núcleo de Apoio à Saúde da Família). A idéia que os serviços mais especializados apóiem e capacitem as equipes de Saúde da Família através de supervisões, com discussão de casos, e consultas conjuntas, promovendo maior resolutividade pela atenção primária. Essa articulação está ainda sendo construída, mas já está andando.